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As alegrias, dores e aprendizados numa travessia de 200km de caiaque

As alegrias, dores e aprendizados numa travessia de 200km de caiaque
Marcelo Figueiral
Jun. 19 - 10 min read
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No final do mês de Junho, após uma palestra que fiz sobre a minha experiência de atravesar o Parque Indígena do Xingu de caiaque (25 dias de expedição e 420 Km de remada) com o projeto Expedição Xingu, recebi o convite para participar de uma expedição inédita para uma travessia entre Iguape/SP até Morretes/PR de caiaque oceânico, com 200 km de distância e 07 dias de duração.

O roteiro passaria ao longo de toda Ilha Comprida, Ilha do Cardoso, Ilha de Superagui, entrando na Baia de Paranaguá, passando pela Ilha das Peças, Ilha das Cobras, Ilha do Teixeira e chegada no Iate Clube de Morretes. Para quem não conhece a região, o roteiro passaria por uma das principais áreas contínuas de mata atlântica do país entre São Paulo e Paraná na Região de Cananéia, Parque Estadual do Cardoso e a Região de Guaraqueçaba, área de várias espécies de fauna e flora, além de um grande berçário de botos (que alias vimos mais de 80 em toda travessia).

 

    Para contextualizar, fazia só 03 anos que não remava e a equipe que estaria indo, era formada por 04 canoistas ativos, sendo um deles, profissional de corredeira com experiências em vários esportes outdoor e colunista de um dos maiores portais de aventura da América Latina.

Um desafio e tanto que fiquei bem atentado em ir e ao mesmo tempo, receoso de encarar. Mas como entraria somente com o "corpo" e meus equipamentos, pois o caiaque duplo foi viabilizado por um fabricante de santa catarina, resolvi aceitar. Entre a data do SIM e a saída da remada, tinha apenas 03 semanas de preparação e muita correria de agenda para acertar. E no final, assim como ocorreu no Xingu, tive a oportunidade de remar apenas 01 dia e 03 dias de treinamento. Ou seja, seria novamente um grande desafio para esse ser humano que gosta de uma boa comida, boa bebida e um tabaco de vez em quando.

Para essa aventura resolvi chamar meu filho mais velho, o Kauê, 21 anos, estudante de 2º ano de economia e que nunca tinha participado de uma expedição ou remado em um caiaque oceânico (precisava garantir pelo menos alguém com bastante energia! hahahaha).

Resolvi levá-lo por vários motivos, mas um dos principais, foi a história dele; há 06 anos atrás passou por um transplante de medula devido a uma Leucemia extremamente agressiva, recebendo a medula do seu irmão mais novo e com alto risco de morte no processo de recuperação. Essa viagem seria uma grande oportunidade para ele - como desafio e superação - e para mim, como pai, - em conviver por 07 dias da semama com meu primogênito que tive tão perto de perder - e aqui abro um comentário; como a maioria dos pais, ter um filho nesta idade (21) é ter poucos momentos de convivência, não por não querer, mas pela intensa vida social deles (facu, estágio, balada e mais balada) e nossa (como pais) de muito trabalho, eventos e compromissos sociais e familiares (faz parte da vida). E a expedição seria o oposto disso; convivência 24 horas! E vou lhe dizer, a experiência e a jornada, foi linda!! (no final mostro o post que ele fez em seu instagran voluntariamente).

E porque das "dores, alegrias e aprendizados"? Para quem nunca fez uma expedição de atividade esportiva de longa duração (seja outdoor ou não) é preciso deixar bem claro que na verdade, lá no fundo, lá no fundo, é um empenho! Você passa frio (ou calor), passa por restrições alimentares (não há espaço ou o peso limita para levar comida), exige (as vezes) além do limite do corpo, há um objetivo a ser alcançado, além da convivência com o grupo (que muitas vezes devido a todo o contexto gera conflitos e embates). Ou seja, não é tão fácil, mas é extremamente gratificante, e até mesmo viciante. Passar por desafios do "novo e do desconhecido" com algumas cargas de adrenalina e dificuldades, libera (no meu caso) altas doses de energia e motivação. Cria uma coragem para viver acima da média (No Pain, No Gain, baby!).

 

Ao entramos no 1º dia da expedição, o trajeto entre Iguape e Pedrinhas (comunidade da Ilha Comprida) foi bem tranquilo. maré a favor, pouco vento e uma temperatura na casa dos 20º graus, 32 km de remada e uma parada numa pequena igreja escondida no meio do trajeto.

Mas no 2º dia, Bah! Pensa num dia lazarento, difícil e de dificuldade. Etapa entre Pedrinhas - Cananéia - Ilha da Casca. Era o maior trecho da remada - 38 km - e pegamos maré contra, vento com rajada contra, chuva e frio! Ficamos 09 horas remando quase sem parar, e a temperatura às 16:00 (sensação térmica) estava próximo do 7.8º graus. Esse foi o dia da DOR. Não aguentava mais remar.

Tanto eu como o Kauê, estávamos cansados, com fome, com frio e já putos de estar naquela situação. A gente não falava mais. Não saia mais voz, só um grunido animalesco entre os dois (hahahahaha, lembrando agora dou risada, mas na hora foi de xingar). As 18:30, já na escuridão, localizamos uma pequena ilha rochosa (com menos de 700 m² de área) que seria a nossa pernoite. Santa Ilha da Casca.

No 3º dia, foi o trecho mais bonito e mágico da viagem! 21 Km de remada (fizemos em menos de 5 horas) entre Ilha da Casca e Marujá (comunidade da Ilha do Cardoso). Maré a favor, pouco vento e temperatura amena. A etapa é linda. É o trecho mais bonito do Canal do Varadouro! Vimos muitos botos nadando ao lado do caiaque, algumas tartarugas, muitos biguás, várias garças e muito peixe pulando para fora da água. Água espelhada, calma e de uma tranquilidade quebrada as vezes só por algumas voadeiras. Esse foi um dos dias da ALEGRIA - tivemos vários nos dias seguintes, mas esse marcou a todos - pela beleza, pela preservação e pela a natureza intocada.

Tive a oportunidade de observar ao Kauê, parado, olhando tudo ao redor com uma contemplação nos olhos que ainda não tinha visto. Lá dentro dele, a minha sensação era que ele estava absorvendo toda a energia daquela natureza intacta de forma a recarregar suas baterias e sua garra pela vida, depois de ter passado por uma luta que poucos passaram. Essa minha sensação de pai de observar aquilo que nos é mais precioso - nossos filhos - e sua felicidade nos olhos, é a alegria do puro amor, do puro querer bem!

O 4º dia foi tranquilo, mas no 5º dia, tivemos a etapa entre Sebuí e Ilha das Peças uma travessia que para mim, foi difícil. Tinha me preparado mentalmente para uma travessia de 19 Km e a etapa, por um ruído de comunicação da equipe, foi de 27 Km. Você pode estar pensando que 8km a mais não é nada, mas numa travessia de caiaque a diferença de 8km dependendo da condições, pode ser mais de 03 horas dentro do caiaque ou só mais 7.200 remadas (se rema tranquilamete 40 remadas/minuto).

E isso faz toda a diferença no preparo; seja desda a hora que acorda (devido ao tipo de café que toma) até a hora da chegada (no preparo dos lanches e paradas que fará ao longo do trajeto). Me preparei para um cenário X e o cenário foi Y. Cheguei meio irritado com a equipe, mal-humorado da fome e do frio (tinha me equipado para remar até meio da tarde e chegamos no final do dia com temperatura bem mais baixo), ou seja, estava naquele dia de pouquíssimo amigos.

E foi desse episódio que saiu um dos maiores dias de APRENDIZADOS da expedição. E não vá pensando que é o clichê que todos usam de "esteja preparado para o inesperado" ou "esteja pronto para alternativas". Isso a gente usa como frase pronta, mas poucas pessoas internalizam isso ou lidam bem com essa situação quando realmente acontece.

Fiquei tão chateado com os fatos, que compartilhei minha frustações e irritações com o Kauê, tratando de igual para igual (não de pai para filho, mas de ser humano para ser humano) e ele, em sua sabedoria dos seus 21 anos de vida (e de uma alma amadurecida pela dor), começou a conversar comigo colocando que o inesperado, o não planejado, ou das dificuldades que a vida lhe apresenta em cenários que muita vezes não espera, tem sua beleza e poesia, visto que não fosse isso, jamais poderíamos evoluir, e que uma etapa desta que foi mais difícil que imaginei, a responsabilidade da frustação não era do grupo, era minha, somente minha. Justamente por ter olhado somente por um ângulo o problema e não visto que ao lado, o problema era na verdade uma beleza, pois o que importava era a jornada e os sentimentos que poderia direcionar para serem bons ou ruins,

Tudo era uma questão de perspectiva! Que porrada eu tomei. Na casa dos meus 45 anos, com muito chão corrido, muitos problemas passados, percebi claramente que aquele pequeno ser humano, vulgo meu filho, estava me ensinando uma das coisas mais legais na prática; a de tornar um problema, somente um obstáculo, e não um problema.

Obrigado filho, suas palavras foram como você disse em seu post "foi mágico do nosso jeito". Juntos aprendemos, nos descobrimos e nos conectamos ainda mais para enfretarmos unidos, essa jornada louca que chamamos de vida!

"Nunca é tarde para ir mais além, nunca é tarde para tentar o desconhecido". Gabriele D'Annunzio


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